Revista Zimbro
by Amigos da Serra da Estrela
 
Psicóloga

2024-12-10

David Correia, Trilhos do Passado Numa Perspectiva com Futuro

David Correia, Trilhos do Passado Numa Perspectiva com Futuro

 

Palavras chave

entrevista  trilhos  
 

O projecto “Trilhos do Passado Numa Perspectiva com Futuro” foi uma iniciativa da ASE, com apoio da CNEFF, desenvolvida no princípio dos anos 90, com o objectivo de promover e inovar os percursos pedestres na região da Serra da Estrela. Hoje, mais de 30 anos depois, a Associação decidiu entrar em contacto com alguns dos voluntários que contribuíram para o desenvolvimento deste projecto.

Na edição do mês de Novembro, apresentamos a entrevista realizada ao David Correia.

1. Que idade tinhas quando andou a trabalhar na construção das veredas?

Tinha entre 16 e 18 anos quando trabalhei na construção das veredas. Naquela época, a ideia de passar o verão em espaços fechados era impensável para mim. O apelo do ambiente natural, com o ar puro, o verde à minha volta e a sensação de liberdade, era irresistível. Além disso, havia algo de especial em poder partilhar esta experiência com os meus amigos. Trabalhar lado a lado com eles tornava os dias mais leves e as tarefas mais significativas. Não era só trabalho, era também convívio, partilha e a construção de memórias que ainda hoje guardo com carinho.

 

2. Naquela época, que ideia tinhas do projeto “Trilhos do Passado Numa Perspectiva com Futuro”?

Quando comecei a trabalhar no projeto, a ideia que tinha era, admito, muito vaga. Para mim, era sobretudo um trabalho no meio da natureza, algo tangível, físico, imediato. Não via, na altura, o pano de fundo mais vasto. Mas havia o Zé Maria, com aquele jeito de quem carregava as histórias do mundo nas mãos. Ele fez questão de me/nos mostrar que os trilhos que recuperávamos não eram apenas caminhos de pedra e terra; eram veias de memória, que já haviam conduzido vidas no passado e que, de alguma forma, voltariam a ser essenciais no futuro.

Ele falava de um futuro que, com os olhos da juventude, parecia-me tão distante quanto as eras que os trilhos tinham atravessado. Falava de histórias gravadas nas curvas do caminho e de um propósito que, na altura, eu não conseguia compreender plenamente. Hoje, olhando para trás, percebo que aqueles passos que dávamos sobre o chão antigo não eram apenas trabalho; mas um ato de preservação, de respeito pela história, e, mais do que isso, uma forma de garantir que os trilhos do passado tivessem um lugar no futuro eram gestos de ligação entre o que fomos e o que ainda seremos.

 

3. Imaginavas que as veredas que foram construídas na altura tinham o alcance e a importância que têm atualmente para o turismo?

Naquele tempo, eu nunca poderia imaginar que as veredas que estávamos a construir teriam a importância e o alcance que têm hoje no turismo. A minha vida era muito centrada em Manteigas, e as experiências que eu tinha com a natureza eram muito pessoais, limitadas ao contacto direto com a serra, especialmente nos acampamentos que fazia com os meus pais ou os escuteiros no alto da montanha. O conceito de turismo de natureza era algo praticamente desconhecido para mim. Não entendia a dimensão que poderia ganhar, nem como isso poderia transformar o lugar onde vivi. O turismo, na minha mente de adolescente, estava longe de ser uma realidade, especialmente aquele tipo de turismo que agora vemos crescer nas nossas veredas.

Na verdade, para a maioria dos amigos da minha idade, o turismo de natureza era uma ideia vaga, algo que existia para os outros, mas não para nós, que já estávamos rodeados da beleza das montanhas e das florestas. Nós éramos mais como guardiões silenciosos desses lugares, do que participantes ativos de algo maior. Pensava-se mais na simplicidade do trabalho e no prazer de estar ao ar livre do que no impacto que aquele trabalho poderia ter para o futuro da região. O conceito de que aquelas veredas poderiam, algum dia, ser pontos de referência para visitantes de todo o mundo, parecia-me uma fantasia distante.

Hoje, olhando para trás, vejo o quão distante estava daquela realidade, que se materializou de maneira tão inesperada e, ao mesmo tempo, tão natural. As veredas, como um rio que segue seu curso, foram ganhando vida e importância de uma forma que eu nunca imaginei.

 

4. O que achas das veredas agora? Consideras que presentemente se deve continuar a promover iniciativas deste cariz para a construção de veredas?

Hoje, com olhos mais abertos e um coração mais consciente, vejo as veredas de forma muito diferente. Não são apenas caminhos entre pedras e arbustos; são traços de uma memória coletiva, rastos de histórias passadas que ecoam no presente e abrem portas para o futuro. Viajar para explorar veredas noutros lugares ensinou-me que cada passo nelas é um diálogo entre a natureza e quem por lá passa, uma troca de silêncios, de cheiros, de paisagens que nos moldam tanto quanto moldamos o mundo ao nosso redor.

Enquanto adolescente, as veredas eram para mim apenas trabalho e convivência com amigos. Não tinha, então, a percepção de que estávamos a restaurar algo que não era apenas funcional, mas profundamente simbólico. Agora sei que cada vereda recuperada é uma oportunidade de reconectar comunidades ao seu território, de criar novas histórias enquanto resgatamos as antigas, de fazer com que o chão que pisamos nos conte algo sobre quem somos.

O caminho, hoje, só pode ser o da promoção de mais iniciativas como estas. Não só para recuperar ou construir, mas para consciencializar. As veredas ensinam-nos sobre resiliência, sobre a ligação com a terra e sobre a importância de preservarmos o que nos define. São uma declaração de que ainda há espaço para a simplicidade, para o contacto puro com a natureza, e para o reencontro com as raízes, que, no fundo, sempre nos esperam.

 

5. Deixa uma memória/comentário que tenhas da tua participação no passado nestas iniciativas.

Trabalhar nas veredas foi, sem dúvida, uma experiência marcante para a vida. Não era apenas trabalho; era um encontro diário com a natureza, com pessoas extraordinárias e, no fundo, comigo mesmo. Ainda hoje consigo sentir o cheiro da terra revirada, ouvir o som das ferramentas que ecoavam nas montanhas, misturando-se com as nossas risadas, e ver o brilho do sol filtrado pelas árvores, como se até a luz fizesse parte do nosso pequeno universo.

Lembro-me com saudade do Zé Maria, sempre pronto a contar histórias e a partilhar a sabedoria de quem parecia entender as montanhas como se fossem parte de si. Havia também o Joaquim Amaral, o nosso capataz, cuja simplicidade era um bálsamo. Ele tinha uma maneira de transformar cada desafio num ensinamento, e cada momento difícil numa lição leve, quase como se as veredas nos ensinassem tanto quanto nós as reconstruíamos.

Os laços que criámos nesses dias de trabalho sob o céu aberto não foram apenas amizades de ocasião. Foram vínculos que perduraram, uma espécie de corrente invisível que nos une até hoje, mesmo que o tempo tenha levado cada um para caminhos diferentes. Quando penso naqueles dias, sinto uma nostalgia boa, um calor no peito que me lembra que ali, entre a terra e as pedras, vivi algo puro e essencial.

Mas talvez o mais importante de tudo tenha sido a mudança na forma como passei a olhar para as montanhas que me rodeavam. Antes, elas eram apenas uma paisagem ao fundo, bonitas mas distantes. Trabalhar nas veredas fez-me vê-las de perto, com um respeito e uma curiosidade que cresceram dentro de mim. A certa altura, calcei as botas, meti a mochila às costas e comecei a explorar aquilo que tinha à minha volta. Esse amor pelas “minhas” montanhas foi o ponto de partida para algo maior, que me levou a viajar para caminhar em lugares desconhecidos, mas que de alguma forma ecoavam aquilo que senti nas veredas da minha terra.

Hoje, olhando para trás, vejo que aquelas veredas não eram apenas trilhos que recuperávamos; eram percursos dentro de nós, que moldavam quem éramos e apontavam caminhos que talvez só descobriríamos mais tarde.

 
 
 

 

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