Revista Zimbro
by Amigos da Serra da Estrela
 

2024-10-07

Não se corrigem erros antigos de um ano para o outro, mas devem-se corrigir, mesmo assim.

Não se corrigem erros antigos de um ano para o outro, mas devem-se corrigir, mesmo assim.

 

Palavras chave

florestas  incendios  
 

Comentei com amigos, durante esta semana, que a página do ‘fogos.pt’ parecia uma loja da M&M’s… Cheio de pintarolas laranjas, azuis e encarnadas…

É trágico!

Arderam, só entre 16 e 19 de Setembro, perto de 140 mil hectares. Para perspectivar esses hectares todos, deixem-me exemplificar: corresponde aproximadamente uma faixa com dez quilómetros de largura do Porto até Mirandela, de Lisboa até Évora, ou de Lagos até Vila Real de Santo António! Só numa semana…

Perderam-se vidas. De civis envolvidos e de profissionais que trabalhavam heroicamente para salvar os bens de todos e deram a sua vida por esse esforço.

O fenómeno dos incêndios florestais não é recente. Agora chamam-lhe ‘fogos rurais’, mas os incêndios não mudaram por isso. Continuam a consumir regularmente enormes extensões de floresta, de terrenos e de património público e privado. Gasta-se pouco mais de 500 milhões de Euros todos os anos na prevenção, incluindo aquisição de material, formação de profissionais e campanhas de publicidade e sensibilização. O orçamento para o combate é mais variável, em função das opções governamentais e a área ardida. Mas é muito superior ao que se gasta na prevenção. Correcção: o ‘orçamento’ para o combate talvez não, mas o efectivamente gasto, esse valor sim, é muito superior ao que se gasta na prevenção…

É que para se criar um incêndio é necessário haver uma ignição, material combustível e condições ambientais favoráveis (quentes e secas). As ignições não se podem evitar por completo, até por que há causas naturais ou de negligência humana ou técnica. Gerir ou mudar as condições ambientais está completamente fora do nosso alcance. O que já mudámos colectivamente no clima, foi para pior! O clima mediterrânico tem condições favoráveis à ocorrência de incêndios e há que aceitar. Mas podemos alterar o aspecto das florestas para que não sejam ‘um barril de pólvora’ à espera de todos os Verões rebentar.

O incêndio florestal faz parte do ecossistema. Estamos sujeitos ao clima mediterrânico, que tem como uma das suas principais características, a coincidência da estação quente com a estação seca. Por isso temos Invernos frescos e húmidos, e Verões quentes e secos. A tendência é para os Verões ficarem progressivamente mais prolongados, e assim também o período da seca. Isso é inevitável, não há como fugir.

O momento que começa o fogo designa-se por ‘ignição’. Tal como na combustão da gasolina nos nossos carros, a ignição, com oxigénio e gombustível da origem à combustão desse combustível com a geração de energia. Se a combustão não for confinada pelo pistão do motor, se ocorre em espaço aberto e consome continuamente combustível sólido (madeira, têxteis, papel, etc.) designamo-lo por ‘fogo’. Quando o fogo se torna descontrolado e a combustão acontece mais depressa que se consegue limitar a combustão de combustível, designamo-lo por um ‘incêndio’. Por isso, um fogo pode ser um evento organizado e até benéfico. Um incêndio é sempre um evento descontrolado, caótico.

Há pessoas com intenções criminosas que fazem ou mandam fazer o que se designa ‘ignição’. Quem as executa são normalmente pessoas com problemas ou distúrbios mentais, designadas p. ex. como pirómanas (pessoas que lançam o fogo pelo prazer de ver arder). A identificação dessas pessoas, as campanhas de sensibilização e prevenção e a actuação rápida e determinada pela justiça é seguramente uma ajuda, mas não se conseguirá nunca evitar por completo que ocorram fogos. Num mundo imperfeito haverá sempre essas pessoas, também é difícil ou impossível evitar.

A nossa paisagem florestal está caótica. É uma mistura infeliz de interesses corporativos e privados e desinteresse privado e público. No país livre que temos, infelizmente cada um tem a liberdade de deixar ao abandono os seus terrenos, sendo que ‘o Estado’ talvez seja dos piores casos. Parte deste problema é jurídico, que tanto na vertente fiscal como do ordenamento é demasiado permissivo: grande parte dos terrenos pertencem a pessoas falecidas (frequentemente os herdeiros também eles, já faleceram), e não se sabe de quem é determinado terreno, se de pessoa certa, incerta ou do Estado ou outras entidades públicas.

Acresce ao desinteresse e abandono as tentativas muitas vezes erradas de ordenar e ‘limpar’. A abertura de aceiros e faixas de limpeza (designadas oficialmente por faixas de controle de combustível) cuja utilidade é quase igual a zero; a falta de planeamento no abate e a falta de protecção dos solos contra a erosão; a permeabilidade de interesses económicos nas acções sobre áreas ardidas.

Estes são os principais problemas da nossa floresta. E esta é uma área onde é possível corrigir a situação!

Aqui vou voltar ao título do meu texto.

É óbvio que os erros devem ser corrigidos. Mas são assim tão antigos?

Quando as técnicas da metalurgia permitiram o aquecimento controlado do ferro para atingir temperaturas elevados o suficiente para moldar o ferro e misturá-lo com níquel e carbono para produzir o aço, começou a Idade do Ferro. Com a invenção do machado a floresta estava condenada. Em Portugal há evidências comprovadas de que a paisagem começou a mudar há cerca de 3.400 anos. Até essa época os humanos viviam com a Natureza e em equilíbrio com a Natureza. A partir de então, começou-se a derrubar as árvores de uma mancha florestal que cobria todo o continente desde a Península Ibérica até o Extremo Oriente. Quando os primeiros reis da nacionalidade portuguesa viram e reconheceram a necessidade de florestar – o mais famoso será o D. Dinís, que mandou plantar pinhais, entre eles o de Leiria – o nosso país era uma paisagem completamente desflorestada. Há mil anos a Península Ibérica era uma região de pequenas e grandes aldeias com campos de cultivo para o seu sustento em seu redor e campos de pastoreio entre as aldeias. As ‘florestas’, como comunidades ecológicas ou botânicas tinham desaparecido. O primeiro grande erro da silvicultura portuguesa foi de se ter trocado as árvores da floresta originária, dominada por várias espécies de carvalhos juntamente com outras espécies arbóreas, todas elas com folhas e não agulhas – trocou-se as folhosas por resinosas! O pinheiro produz muito menos manta-morta florestal e as agulhas podem demorar dezenas de anos a decompor-se; o fundo da mata de pinho é muito mais seco e permeável à chuva, de modo que não deixa acumular humidade nem deixa sobreviver as comunidades de fungos essenciais à sobrevivência das árvores.

Esse erro manteve-se, principalmente a norte do Rio Tejo, com a manutenção de imensas áreas de pinhal. Durante o Estado Novo ainda se manteve a ideia de plantar os pinhais. Eram, no entanto, mantidos com muito trabalho manual, havia espaçamento entre árvores, extraía-se a resina e vigiavam-se as plantações. Havia um Serviço Florestal com recursos humanos e financeiros que impunha a sua presença e as suas regras. Com a mudança de paradigma político, mudou também a silvicultura: passou a ser governada pelo lucro da celulose. Tal como o Mundo, tudo tem de ser rápido. O pinheiro demora 30 anos ou mais a criar-se, um eucalipto consegue estar ‘pronto’ em menos de dez anos. Onde não imperou a necessidade de manter a produção de rolhas para o tinto (leia-se montado de sobreiro, de onde se extrai a cortiça) os pinhais foram substituídos por eucaliptais. Foi o segundo grande erro: introduzir o eucalipto na paisagem florestal.

O eucalipto não é considerado uma resinosa, embora tenha nas suas folhas e lenha, muitos óleos essenciais e voláteis. Tal como o pinheiro, deixa o solo com grande quantidade de casca e folhas, difíceis de transformar em solo florestal e húmus. Por essas razões, a sua combustão é muito acelerada em caso de incêndio.

Enquanto não foram fustigados pelo fogo, a imagem da silvicultura foi-se mantendo com um aspecto razoável: pinhais em decadência pelo desinvestimento público na floresta e o despovoamento do interior do país e eucaliptais em rotatividade rápida de exploração. Com os incêndios inevitáveis as pinhas no solo abrem-se e novos pinheiros nascem, mas de forma espontânea, desordenada e densa. Nos eucaliptais, após queimados, as novas plantas nascem espontaneamente a partir das raízes pela base dos troncos queimados. Várias árvores de cada base. Fica um matagal de árvores. Com as áreas ardidas a aumentar, as margens de lucro nas indústrias papeleiras a diminuir com a globalização do comércio e a informatização e desmaterialização de algumas burocracias, também muitos eucaliptais estão desordenados.

Tanto o pinhal como o eucaliptal renascem espontaneamente após o incêndio; só que cada vez menos ordenados e caóticos. Passados três ou mais gerações de fogos, não há organização do espaço florestal, nem possibilidade de tirar rendimento, ficando a juntar biomassa para incêndios sucessivos.

Segundo os dados mais recentes, o 6º Inventário Florestal Nacional de 2015, temos em Portugal 719.000 hectares de sobreiro e 355.000 de azinheira, 906.000 ha de pinhal, dos quais 713.000 de pinheiro bravo e 845.000 ha de eucaliptal.

A sul do Rio Tejo a paisagem florestal é dominada pelo sobreiro, no interior pela azinheira. Apesar da vasta área florestal, aqui vemos pouquíssimos incêndios. O montado é mantido com o solo limpo para produção de cereais, pasto de ovelhas, cabras ou vacas, engorda de porcos ou coutadas de caça. As árvores são das espécies que sempre aí existiram, estão em equilíbrio com o clima e mantêm um ecossistema saudável, tanto dentro como por cima do solo. É seguramente mais pobre do que o ecossistema natural que outrora existiu, mas mantém-se útil, com bom rendimento económico e livre de incêndios. O modelo da propriedade, em grandes parcelas de terreno, certamente é uma das (senão a principal) razão para a manutenção do modelo de exploração. No Alentejo, na Beira Interior e Trás-os-Montes, onde não há pinheiros, a silvicultura funciona – livre do pesadelo dos incêndios recorrentes.

A norte de um limite definido aproximadamente pela latitude entre Peniche e Portalegre (é quase ‘a norte do Rio Tejo’, mas há muito eucalipto no Alto Alentejo e na Estremadura…) temos uma paisagem florestal diferente: à excepção do interior e onde o clima é demasiado frio ou seco para o pinheiro ou para o eucalipto, estas duas espécies cobrem quase todas as encostas onde não haja casas, hortas, vinhas ou pomares. Desde o Baixo Minho – e continuando pela vizinha Galiza – passando pelas bacias dos rios que confluem para o Baixo Douro, caso dos Rios Ferreira, Sousa, Tâmega e Paiva, pela bacia do Vouga, toda a parte direita (atlântica) do Mondego e todo o Baixo-Zêzere.

As áreas acima indicadas de pinheiro-bravo e eucalipto perfazem 1.558.000 hectares – são 17,5% da área total do país.

O ‘barril de pólvora’ está instalado. Aguarda apenas que alguém acenda o rastilho…

Enquanto houver pinhais e eucaliptais, principalmente desordenados e pouco ou mal explorados, não acabará o flagelo dos incêndios.

Há uma expressão popular que diz, ‘para grandes males, grandes remédios’ – não se curam problemas graves com pequenos remendos. Albert Einstein disse uma vez que não se resolvem os problemas com a mesma forma de pensar com que se criaram os mesmos problemas.

Ano após ano, as florestas ardem, poluem a atmosfera com cinzas e libertam quantidades imensuráveis de CO2. Numa época em que se pretende sequestrar este mesmo gás e evitar poluição. As perdas em vidas animais e biodiversidade são totais em vastas áreas. As fábricas perdem as suas instalações e produtos, interrompem-se os circuitos de produção. Pessoas perdem as suas alfaias, terras e casas, o investimento de vidas inteiras perdidas em minutos. Por vezes até perdem as suas vidas.

Declarar o estado de calamidade justifica-se perfeitamente, mas não resolve nada. Viu-se após os incêndios de 2017 e 2022 que essas declarações ficam bem no momento, permitem ultrapassar alguns limites legais com reflexos nas áreas laborais, administrativas e financeiras. Não trazem a biodiversidade de volta, não devolvem os clientes às fábricas, nem os cultivos e as casas às pessoas. Nem trazem os falecidos de volta, nem tão-pouco facilitam os processos indemnizatórios…

Como referi, estamos amarrados a um clima eternamente hostil, favorável à propagação de incêndios. Não há como evitar as ignições, os inícios dos fogos. A única coisa que pode ser feita é evitar que as ignições se propaguem e se transformem em incêndios e que estes tomem as proporções que se tem visto nos últimos anos.

Aumentar as verbas para o combate, declarar estados de calamidade, atribuir compensações, incentivos e apoios pecuniários são remendos constantes, infindáveis. Não são o ‘grande remédio’ para o grande problema.

Este problema tem origem num passado distante e a sua resolução pode determinar alguma prosperidade para várias gerações futuras. Mas é preciso ter MUITA coragem para resolver: alterar a forma de pensar e agir, mudar as atitudes, mordomias e regalias; iniciar um ordenamento jurídico novo para a agricultura e silvicultura, nas suas vertentes técnicas e formativas, jurídicas, fiscais, no direito público e civil. Seria obrigatório implementar um modelo novo e diferente nas estruturas entre Bombeiros, Protecção Civil, Força Aérea e nos interesses estabelecidos e antigos à volta dessa parte do problema. Era necessário criar um novo Serviço Florestal – não recriar o antigo, mas repensar os conceitos subjacentes à gestão das florestas, do ponto de vista do equilíbrio ecológico, num mundo em rápida mudança climática e do equilíbrio geoestratégico num mundo em rápida mudança demográfica. Era necessário ter a ousadia de interferir de forma descarada nos direitos privados, sucessórios, corporativos e sociais. A posse administrativa temporária e definitiva teria de ser admitida como parte da solução.

Era preciso ter alguém a comandar e ter a coragem de mudar as regras do jogo. E não era alterar as regras do fora-de-jogo ou das substituições. Era tirar as balizas, mudar o campo de jogo e transformar um futsal num pólo aquático. Durante o jogo.

É que a Natureza não se compadece com a nossa inacção; os incêndios devoram tudo que lhes passa à frente, não pedem perdão nem licença; os meios, os bens e as vidas perdidas não se recuperam. Será que temos de continuar a perder vidas, casas, terras de cultivo e floresta todos os anos, sem vislumbre de coragem para alterar o estado das coisas e o pensamento monossilábico e cuidadoso? Quantas vezes mais será necessário ver ‘metade do país’ desaparecer em chamas até se arregaçar as mangas, se deite fora tudo que está mal, se bata na mesa e se comece a resolver o problema dos incêndios? Ainda se pode corrigir erros de muitos séculos. Mas será que temos quem tenha coragem e vontade?

Não chame o 112 #Portugalemchama

 
 
 

 

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3 Comentários


  1. Manuela Pires da Fonseca diz:

    Muito bem. Permito-me só fazer um comentário a “O primeiro grande erro da silvicultura portuguesa foi de se ter trocado as árvores da floresta originária”. É que, como estava a descrever, quando a silvicultura portuguesa entra em campo, já não havia a tal “floresta originária”. Os pinhais do litoral visaram parar o avanço das dunas sobre os campos agrícolas. A florestação das serras visava parar a erosão. Nestas condições, seria impossível plantar folhosas. Temos que ver a História no seu contexto: aquela opção, foi a opção certa no seu tempo. Eram os pinhais que aqueciam a casa das pessoas e faziam trabalhar toda a indústria dependente de caldeiras. O problema, foi a sociedade seguir outro caminho, nomeadamente passara a usar o petróleo. No caso do eucalipto, falta um pormenor: uma União Europeia que precisa papel e o azar de termos as condições ideais para o produzir; sem o banco mundial e o financiamento europeu não teríamos tido as arborizações que temos. E agora? Basta isso que disse: transformar o futsal em polo aquático a meio do jogo.

  2. Ana Sanches diz:

    A maiores fontes de ignição são os interesses económicos à volta do fogo. São eles o facto de os bombeiros receberem também consoante a área ardida (lamento mas isto tem que ser dito, e na verdade nunca sabemos de facto o que acontece no terreno e que indicações são dadas ou se de facto se podia ter feito diferente e pelo que já ouvi de um bombeiro, quando não há vidas em risco é deixar arder porque é só mato!!.). Madeireiros: cujo preço da madeira ardida é sempre inferior (seria assim tão descabido obrigar a manter o mesmo preço da madeira na época estival?) e claro as já famosas negociatas com aeronaves privadas. Enquanto isto não for resolvido, plantem o que plantarem que nada adiantará…os maluquinhos que gostam de ver as coisas a arder ou a ti Manel que decidiu fazer a queimada quando não devia só têm capacidade para fogos e não para incêndios…se é que me faço entender…

  3. Penso estarmos todos de acordo – os incêndios são um fenómeno natural muitíssimo ampliado pelo desgoverno em que está a nossa floresta.
    Se houvesse uma autoridade florestal bem dirigida, com meios financeiros e humanos suficientes, seria possível corrigir os tais erros antigos. Mas apenas com organização e planeamento…
    A imensidade de área com boa aptidão florestal que temos, se fosse cultivada com espécies autoctones, apesar de crescerem muito devagar, seria um recurso suficiente para manter as indústrias papeleiras, corticeiras e de mobiliário. E teriamos um país onde os incêndios não eram um flagelo: o fogo não se propaga nas matas de carvalhos como no pinho/eucalipto. Não se gastavam fortunas em combates a incêndios, não se perdiam vidas e investimentos e não se libertavam quantidades enormes de carbono para a atmosfera…

    Com o bom planeamento, em gerações futuras, muitos problemas podiam-se resolver. Mas só com um plano estruturante da floresta, não com remendos…

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