Revista Zimbro
by Amigos da Serra da Estrela
 

2024-03-05

Quatro Apontamentos Serranos

Quatro Apontamentos Serranos

 

Palavras chave

baldios  cao  madeiro  
 

Baldio

Na Assembleia de Compartes, uiva um rebanho de ovelhas. Reclamam os baldios, paus e pedras calcados pelos antepassados que trazem inscritos no rosto. Avós iguais a eles.

São terras com a própria idade da propriedade. Terras que só por cima dos nossos corpos é que no-las hão-de tirar. Terras de muitos e não de um só, e que por isso não temem os incêndios que as hão-de consumir. Nelas se vai praticando a silvopastorícia, a pastorícia dos Silvas. Mas também dos Aveleiras, dos Piçarras, dos Terrinhas…

Na Assembleia de Compartes, último reduto da propriedade em convívio, alvéolo de democracia total, representa-se o acto da sobrevivência arrastada do interior serrano. Os actores são irmãos de terra. Trabalhadores de trabalho e dores proprietando em convívio. Vivendo vidas de paus e pedras. Vidas de simplesmentes, habitadas umas pelas outras. Nutridas por memórias. 

– Aqui o Camadas é que se lembra desses tempos. Conta-nos, Camadas, conta-nos como era!…

 

Cão

Com o coalho do queijo amanteigado, pai e filho amamentavam pequenos cães da serra. Aos fins-de-semana, vendiam os cães e os queijos à beira da estrada secundária por onde iam passando os carros dos turistas e emigrantes e as motoretas dos poucos habitantes locais. Por isso ali estavam, naquele dia de Natal, banca montada numa recta mais longa, junto de um poio-chamariz.

Para dar um pouco de Natal ao filho, o pai dissera-lhe que o menino que lhes comprasse o cachorro mais pequeno era o Menino Jesus. O miúdo fartou-se de esperar, enquanto a bolita de pêlo se irrequietava dentro do caixote com rede, investindo contra os poucos carros passantes. 

O miúdo não queria ficar sem o cachorro, mas também não compreendia como é que ninguém lho tinha ainda comprado. Por aquela estrada da serra, onde o sol de Inverno amaciava o frio seco, deviam passar mesmo muito poucos Meninos Jesuses.

 

Madeiro

O miúdo sempre sonhara em ter o seu madeiro de Natal, que aquecesse com generosa chama a pobre família e a casa fria de pedra, enfeitada com ramos, folhas e bugalhos (à falta dos cintilantes enfeites artificiais). 

Na véspera de Natal, depois da missa do galo, cantou e dançou com os mais velhos em torno do grande madeiro comunitário, que no centro do largo da aldeia se deixava consumir devagar, para mais longamente aconchegar os ossos e as almas dos aldeãos.

O pai prometera-lhe que naquela quadra natalícia haveria de receber um presente, como merecido prémio pelos bons resultados da quarta classe.

Na manhã de Natal, foi o primeiro a acordar. Procurou o presente à volta da árvore de Natal, um pequeno e raquítico pinheiro espetado a um canto da sala que também era quarto. 

– Ó pai, não está aqui nenhuma prenda! Mas estava, bem à frente dos seus olhos, com o fio das luzinhas fundidas a servir de laço. Era o escanzelado pé de árvore que haveria de crescer e de engrossar, para um dia se tornar madeiro familiar.

 

Plantação

Juntam-se duas ou três vezes por ano para plantar. São entre dez e vinte familiares e amigos. 

Na noite anterior, convivem à volta de umas feijocas e de um copo de tinto.

Na manhã da plantação, seguem para o Corredor de Mouros, para a Fraga Grande, para o Cortadouro da Mouca…

O processo é simples: abre-se o buraco, “desencoveta-se”, coloca-se o torrão na terra, calca-se bem e faz-se um pouco de mulching.

Os pequenos Quercus Pyrenaicas sorriem e agradecem – estão de regresso a casa.

Não passam de meia dúzia de “urbanóides”, amigos da Natureza e filhos da Serra. São uma gota de água no mar da desflorestação. Plantam alheados da possibilidade do fogo, que tão rapidamente destrói o que tão lentamente se forma.

Descansando apenas para comer um naco de pão com presunto e dois golos de cerveja, aqueles poucos plantadores (meia dúzia de “líricos” pingados) deixam na Serra pequenos pontos de esperança.

Conscientes de que são poucos, impotentes e fracos, limitam-se a fazer os possíveis – e a mais não são obrigados.

 
 
 

 

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