2024-03-05
Palavras chave
editorialA primeira vez que participei num evento organizado pela ASE, o comprimento das minhas pernas não estava à altura da camada de neve que cobria as veredas por onde caminhávamos na Serra da Estrela. Como, na altura, era ainda uma criança pequena, à medida que andava, os meus passos enterravam-se profundamente no manto branco que nos acompanhava ao longo de vários quilómetros. Quando, então, percebia que, sozinha, não era capaz de sair dos buracos onde estavam enfiadas as minhas botas, o adulto que caminhava atrás de mim era obrigado a viver a minha saga e, simultaneamente, ajudar-me a sair dela: segurava-me pelos braços e puxava-me para cima até que os meus pés chegassem novamente à superfície e eu pudesse voltar a caminhar em frente. A seguir, tentávamos recuperar os metros que nos distanciavam do restante grupo, mas fazíamo-lo com cuidado, na esperança de que as minhas pernas não fossem novamente engolidas pela altura da neve. Após alguns passos delicados – meras carícias na encosta da montanha – a superfície branca voltava, inevitavelmente, a ceder e a situação estendia-se repetidamente pelas veredas que se iam animando ao ver-me afundar. No fim de contas, de que importa o tamanho das crianças se mais profundas são as imagens que lhes sedimentam na memória.
As horas de viagem que fazíamos em direcção ao coração da Serra da Estrela, que, durante muitos anos, palpitou ofegante no Covão d’Ametade, marcavam-se pelo entusiasmo daquilo que nos esperava nos dias seguintes. As caminhadas e o esforço partilhado entre muitos, de todas as idades, a par com as milhares e milhares de árvores plantadas nos horizontes da Serra. Os rostos que revemos anos depois, como se tivesse sido ontem o momento da última despedida. As cores florescentes das mochilas e casacos, que enaltecem a vida de caminhantes, a par com os azuis intensos, castanhos e verdes da Natureza. As pessoas à volta da fogueira que se aquecem mutuamente, um calor que vai além do lume, que arde na lenha dos diálogos, enquanto os flocos de neve vão caindo com a serenidade habitual. As refeições quentes depois de um dia bem passado e os cálices de fundo tapado, com zimbro ou aguardente, que nos aceleram o pensamento, aconchegando o estômago e a alma. E, claro, a mirar-nos de cima, com uma sabedoria intangível, encontramos a singularidade do céu nocturno, que faz jus ao seu nome: Serra da Estrela.
Os anos passam, os cenários mudam. Além do meu comprimento, que parece ter aumentado uns centímetros desde então, o clima tem vindo a mudar e podemos, inclusive, verificar que o embranquecer da paisagem no Inverno tem vindo a diminuir de intensidade nos últimos anos. Talvez sejam estes os grandes motivos pelos quais as minhas pernas não voltaram a ficar subterradas na neve. Não foram, no entanto, as mudanças que me motivaram a escrever estas linhas e foram, em vez disso, os detalhes que teimam em persistir, firmes, perante a realidade dessas alterações.
É inegável o impacto dos já 42 anos de história da Associação, tal como o que estas quatro décadas de vida tiveram oportunidade presenciar, criar e desenvolver. É disso que se trata quando pensamos na lista interminável de actividades, sensibilizações e posições que a Associação Cultural Amigos da Serra da Estrela tem vindo a assumir ao longo das últimas décadas, independentemente dos contextos e das adversidades que se colocam no caminho. A ASE e os seus valores são transversais ao tempo e às suas vicissitudes. A ASE distingue-se pela real concretização dos valores a que se propõe. Quanto das experiências não será um acréscimo enriquecedor quando nelas dominam os valores da Amizade?A felicidade de viver estes momentos ao longo de tantos anos move-me na direcção do futuro. Felicitar a ASE nesta data tão especial é, ao mesmo tempo, endereçar o meu profundo agradecimento às pessoas (tantas!) que têm, em conjunto, escrito uma história bonita sobre a relação das pessoas com um dos mais belos lugares do mundo – a Serra da Estrela. É a aliança entre as pessoas e este lugar que desperta em mim a enorme curiosidade de aprender a amar e a respeitar a natureza. Comecei por fazê-lo na Serra da Estrela, mas hoje reconheço que este é um lugar que poderia representar um outro qualquer.
Parabéns ASE e que venham mais 42!
Defesa ambiental | 2024-11-09
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